E tudo sempre principiava como se fosse
para mim possível transitar ileso pelas chamas de um inferno. Um inferno de
labaredas rubras. Chamas de colorido imparcial.
O que importa deveras é que na verdade me
perdia de mim naquilo que sou. Naquilo que é expressão de mim no mundo. E
ilusoriamente meus sentidos me faziam crer que meu próprio corpo se mesclava a
uma matéria da qual a substância incandescente era da mesma natureza do fogo
que não só consome, como também destrói e conduz à cinzas, a natureza primeira,
talvez única de um ser.
E eu era então uma coisa não humana. Um
ente desvinculado de uma possível cadeia evolutiva. Minha forma, minha
particularidade enquanto coisa existente, se consistia em ter em mim mesmo o
poder da criação. A voz imperativa também da destruição, que ao vibrar
ressonante e impetuosa, estilhaçava toda e qualquer conformação de matéria que
não fosse eu mesmo, fazia parte também de mim.
E o mundo era eu, e o mundo cabia na palma
da minha mão. Tão minúsculo e insignificante como um simples grão de areia de
uma vasta praia, ou de um infindável deserto.
O sol e a lua e os astros não passavam de
conformações ou de uma extensão de mim naquilo em que me consistia - do ínfimo grão de areia, ao insondável
universo estelar da grandiosidade de mim. E eu e o deus éramos um. E meu poder
o poder do deus. A minha força e pungência de expressão não se distinguia de
qualquer possível existência que escapasse a minha plena e satisfatória e
estreita percepção.
E assim como se desenrola um antigo
pergaminho que quer conter em si a profundidade da origem de todas as coisas,
assim se desdobrava minha capacidade de visão. Visão de mim, visão do outro, visão
do universo.
E como que se a cada pensamento que se
desprendia de minha mente um tentáculo de meu próprio corpo fosse. Decepar um
desses tentáculos não me fazia falta, não me causava dano ou implicava em
perda, pois de imediato um novo
pensamento igual ou de mesma importância e valor renascia.
E meu tempo era de incontáveis dias. Minha
alma desconhecia início e não concebia fim. E o meu eu era por si só cósmico. A
universalidade minha, implicava na expansão e abrangência de meu poder. Um poder
sobre humano. Nada havia que meu espírito não abarcasse, nada à minha percepção
escapava. E se principiava a sensação de algum vazio, a possibilidade de um
vácuo, logo minha mente criadora o preenchia. E dor ou prazer se equivaliam e eu já não
distinguia do inferno, um possível paraíso, pois meu espírito consumava em si
próprio os dois princípios.
Sempre foi de minha capacidade
transfigurar ou estabelecer metamorfoses entre eu e toda e qualquer conformação
da matéria. E o medo, o verdadeiro horror,
implicava somente em saber que de alguma forma, tudo se transfigura, tudo na
verdade num determinado momento se vê despido de forma.
Eu concebia e a dor e alegria da concepção minha se
propagava feito luz. Um facho de mim invadia como que a vasta escuridão
interestelar, e lá estava eu, um astro, mais uma extensão de mim. E meu império
universalizava-se não em um corpo delimitado e tangível, mas numa expressão de
força, num poder configurado.
Jamais quis tanto como quando percebi
possível estender o meu querer para além de mim, numa espécie de potência
inexaurível, uma conformação estabelecida de meu eu supremo por sobre todo ser,
toda a matéria.
Antes de forma magistral, encontrava-me sempre
no mais insondável labirinto. O labirinto de mim. E sempre incansável,
percorria trilhas desconhecidas, indo rumo a uma pré-história, uma
possibilidade de vir a ser antes de ter realmente inclusive existido.
Eu já sabia de mim antes mesmo que a
primeira estrela despontasse no horizonte. E o sol que me aquecia, era meu eu
fincado feito pilastra, demarcação de origem; princípio e possibilidade de fim.
Investigava cada veio de minha
substancialidade e meu olhar ardia com o brilho incandescente das lavas que escorriam
da cratera profunda em que se consistia minha própria independência de existir.
E essa imparcialidade subjacente entre o eu e o todo, soberania minha sobre as
demais existências, conduzia-me como que, a saber hoje do amanhã, já tendo
esgotado por inteiro o ontem que foi pretérito.
Eternizado em mim o poder, estendia do
braço ora benigno, ora maligno e estipulava minha sentença sobre a
possibilidade do sono meu e de qualquer um que dormisse.
Previamente conhecedor de uma ruína que
na certa um dia pudesse vir a consumar - lançar ao esquecimento meu - a
concretude do todo, divagava sempre que me era possível, na possibilidade de
manter-me assim eterno.
"...O POSSÍVEL PRINCÍPIO DA EGOÊNCIA ENQUANTO UNIFICADOR DA FÉ HUMANA, TENDO COMO VALOR SOBERANO A JUSTICA. ...VALOR SUPREMO DE UM MUNDO QUE SE CRÊ MONOTEÍSTA, PORÉM SE DIVIDE NA FÉ PELA IMPOSSIBILIDADE ECUMÊNICA DAS RELIGIÕES. ...MUNDO ESTE QUE AINDA DÁ LUGAR A UM POLITEÍSMO DE CARÁTER TRIBAL, RIVALISTA E BELIGERANTE".
Meu nome? Meu nome é Alex. E vivo hoje só. Só e isolado do mundo. Na
verdade me pergunto se toda a abrangência de meu ser é capaz de ocupar o espaço
ilimitado de que disponho. Na verdade vivo uma questão profunda. Ou melhor
sobrevivo à uma indagação profunda. Homem maduro que sou, espanta-me ir de
encontro a mim e descobrir-me tão negligente com a criteriosidade de uma vida
decentemente burguesa.
Se somos o resultado de nossas escolhas do passado. Se o que se vive no
hoje e se projeta para o amanhã nada mais é que a somatória de nossas decisões
vida a fora. Dou-me conta de que acertadamente errei muito então, ou colocando
de outra forma: fiz as escolhas erradas, tomei decisões incertas, e o que
chamei de liberdade para castigo meu não passou de um devaneio. Minha própria
ausência de critérios, ou minha indiferença aos critérios que delineiam o
indivíduo de caráter e valor, conduziu-me ao então homem, tão despido de
qualidades e autênticos valores que hoje sou. Ao menos os valores que diz o
mundo, a sociedade em que me insiro, prezar.
Destemido por natureza, e convicto de que, na vida o que vale mesmo é o
prazer que se extrai de cada instante vivido, conduzido fui até hoje pelo
ímpeto de meus desejos.
E jamais pensei fosse de mim desconhecida qualquer característica comportamento
sólida. Sempre fui previsível perante mim, aos meus olhos, a meu foro íntimo.
E talvez por isso mesmo fui homem de poucos sonhos, de ganância
amena, relapso para com as virtudes, ou
impróprio para a prática de alguma sã virtude. Talvez tenha sido virtuoso, e
nisso sei que não peco em afirmar, na prática da caridade de acudir o próximo.
Isso óbvio, desde que não implicasse em ter que sacrificar o que era por
sedimento a minha própria satisfação. Jamais daria na fome meu pão inteiro a um
faminto. Um pedaço na certa, inteiro não.
E como dizia no início, relegado à solidão, a um isolamento descomunal, tenho deparado-me com o inevitável, sou
obrigado a minha. Inclinado ao orgulho e à indiferença de qualquer crítica
voltada à minha pessoa, sempre fui de uma concreticidade de ocupar-me de mim e
somente de mim. E é com estranheza entre
eu e eu mesmo que, a cada dia, a cada momento vivido, me desdobro como um
lençol guardado numa gaveta. Ou pego-me
a desnovelar um novelo que sempre esteve sossegado em seu canto aguardando o
momento para ser desfiado e ceder seu fio a uma possível trama.
E logo eu que sempre me considerei por natureza drástico sim, dramático
não, dou-me conta de que principio numa encenação trágica. Uma encenação de mim
para comigo, no palco restrito deste ambiente vasto, que me serve por leito para o escorrer das
águas do rio de meus dias.
Jamais pude crer desde que fui lançado à arena da vida que seria de
forma tão cruel conduzido a excluir-me do convívio humano. Na verdade amanheço
e percebo-me como o sol a raiar no horizonte, iluminando nada além de uma
extensão de terra tosca, uma paisagem sem encantos. E anoiteço buscando
dissolver o silêncio mudo do dia em possíveis sonhos que fomentam minha alma
sempre ávida de uma previsibilidade do amanhã desconhecido.
E inspiro o ar vicioso da mesmice de meus próprios hábitos. Minha rotina
é como uma rocha que resiste às intempéries. E esgoto-me em querer de mim uma
novidade, quando de mim já o sou por completo mistério revelado.
E o que alcanço a cada dia, no galgar dos degraus do tempo, não passa de
uma previsibilidade de mim. Já sei hoje como serei amanhã. E conduzo então os
fatos de forma simplificada. Minha vida se por quebra-cabeça tomo, encontro-a
fácil, como formas de beiradas geométricas que se unem num critério óbvio demais
para qualquer um que quisesse se ocupar dela.
Mantenho assim os nervos tensos. Ergo e endureço a cerviz diante da vida
e aguardo temeroso o que me restará no ponto final da existência. O espectro de
minha própria morte.
E a alegria, tristeza, tempestuosidade ou bonanza em mim, são como
pontos antagônicos que se rivalizam entre si, nenhuma contrafacutualidade
geram, a não ser um relampejo de mim, naquilo que já sei que sou.
Portanto o avesso de mim é nada mais que a inevitável ânsia daqueles que aguardam a
chegada do trem na estação. Onde então devem recolher sua bagagem e principiar
a marcha rumo ao lar que os aguarda. Lá onde seus compromissos são como tijolos
que erguidos formarão algo de significativo, até mesmo de belo, ao olho de algum
estranho.
Percebo então que dentre muitos, não sou assim tão inevitavelmente
previsível. Sou sim como uma interrogação, no final de uma frase inserida num
diálogo entre Deus e o Diabo.
E a resposta a essa indagação está lá, enterrada em meu íntimo.
Constitui-se na verdade, na coroa de espinhos que orna meus dias e embeleza de
forma sutil e significativa o mistério da vida.
FIM
ALEX
E O MISTÉRIO DA VIDA
Meu nome? Meu nome é Alex. E vivo hoje só. Só e isolado do mundo. Na
verdade me pergunto se toda a abrangência de meu ser é capaz de ocupar o espaço
ilimitado de que disponho. Na verdade vivo uma questão profunda. Ou melhor
sobrevivo à uma indagação profunda. Homem maduro que sou, espanta-me ir de
encontro a mim e descobrir-me tão negligente com a criteriosidade de uma vida
descentemente burguesa.
Se somos o resultado de nossas escolhas do passado. Se o que se vive no
hoje e se projeta para o amanhã nada mais é que a somatória de nossas decisões
vida a fora. Dou-me conta de que acertadamente errei muito então, ou colocando
de outra forma: fiz as escolhas erradas, tomei decisões incertas, e o que
chamei de liberdade para castigo meu não passou de um devaneio. Minha própria
ausência de critérios, ou minha indiferença aos critérios que delineiam o
indivíduo de caráter e valor, conduziu-me ao então homem, tão despido de
qualidades e autênticos valores que hoje sou. Ao menos os valores que diz o
mundo, a sociedade em que me insiro, prezar.
Destemido por natureza, e convicto de que, na vida o que vale mesmo é o
prazer que se extrai de cada instante vivido, conduzido fui até hoje pelo
ímpeto de meus desejos.
E jamais pensei fosse de mim desconhecida qualquer característica comportamento
sólida. Sempre fui previsível perante mim, aos meus olhos, a meu foro íntimo.
E talvez por isso mesmo fui homem de poucos sonhos, de ganância
amena, relapso para com as virtudes, ou
impróprio para a prática de alguma sã virtude. Talvez tenha sido virtuoso, e
nisso sei que não peco em afirmar, na prática da caridade de acudir o próximo.
Isso óbvio, desde que não implicasse em ter que sacrificar o que era por
sedimento a minha própria satisfação. Jamais daria na fome meu pão inteiro a um
faminto. Um pedaço na certa, inteiro não.
E como dizia no início, relegado à solidão, a um isolamento descomunal, tenho deparado-me com o inevitável, sou
obrigado a minha. Inclinado ao orgulho e à indiferença de qualquer crítica
voltada à minha pessoa, sempre fui de uma concreticidade de ocupar-me de mim e
somente de mim. E é com estranheza entre
eu e eu mesmo que, a cada dia, a cada momento vivido, me desdobro como um
lençol guardado numa gaveta. Ou pego-me
a desnovelar um novelo que sempre esteve sossegado em seu canto aguardando o
momento para ser desfiado e ceder seu fio a uma possível trama.
E logo eu que sempre me considerei por natureza drástico sim, dramático
não, dou-me conta de que principio numa encenação trágica. Uma encenação de mim
para comigo, no palco restrito deste ambiente vasto, que me serve por leito para o escorrer das
águas do rio de meus dias.
Jamais pude crer desde que fui lançado à arena da vida que seria de
forma tão cruel conduzido a excluir-me do convívio humano. Na verdade amanheço
e percebo-me como o sol a raiar no horizonte, iluminando nada além de uma
extensão de terra tosca, uma paisagem sem encantos. E anoiteço buscando
dissolver o silêncio mudo do dia em possíveis sonhos que fomentam minha alma
sempre ávida de uma previsibilidade do amanhã desconhecido.
E inspiro o ar vicioso da mesmice de meus próprios hábitos. Minha rotina
é como uma rocha que resiste às intempéries. E esgoto-me em querer de mim uma
novidade, quando de mim já o sou por completo mistério revelado.
E o que alcanço a cada dia, no galgar dos degraus do tempo, não passa de
uma previsibilidade de mim. Já sei hoje como serei amanhã. E conduzo então os
fatos de forma simplificada. Minha vida se por quebra-cabeça tomo, encontro-a
fácil, como formas de beiradas geométricas que se unem num critério óbvio demais
para qualquer um que quisesse se ocupar dela.
Mantenho assim os nervos tensos. Ergo e endureço a cerviz diante da vida
e aguardo temeroso o que me restará no ponto final da existência. O espectro de
minha própria morte.
E a alegria, tristeza, tempestuosidade ou bonanza em mim, são como
pontos antagônicos que se rivalizam entre si, nenhuma contrafacutualidade
geram, a não ser um relampejo de mim, naquilo que já sei que sou.
Portanto o avesso de mim é nada mais que a inevitável ânsia daqueles que aguardam a
chegada do trem na estação. Onde então devem recolher sua bagagem e principiar
a marcha rumo ao lar que os aguarda. Lá onde seus compromissos são como tijolos
que erguidos formarão algo de significativo, até mesmo de belo, ao olho de algum
estranho.
Percebo então que dentre muitos, não sou assim tão inevitavelmente
previsível. Sou sim como uma interrogação, no final de uma frase inserida num
diálogo entre Deus e o Diabo.
E a resposta a essa indagação está lá, enterrada em meu íntimo.
Constitui-se na verdade, na coroa de espinhos que orna meus dias e embeleza de
forma sutil e significativa o mistério da vida.
FIM
ALEX
E O MISTÉRIO DA VIDA
Meu nome? Meu nome é Alex. E vivo hoje só. Só e isolado do mundo. Na
verdade me pergunto se toda a abrangência de meu ser é capaz de ocupar o espaço
ilimitado de que disponho. Na verdade vivo uma questão profunda. Ou melhor
sobrevivo à uma indagação profunda. Homem maduro que sou, espanta-me ir de
encontro a mim e descobrir-me tão negligente com a criteriosidade de uma vida
decentemente burguesa.
Se somos o resultado de nossas escolhas do passado. Se o que se vive no
hoje e se projeta para o amanhã nada mais é que a somatória de nossas decisões
vida a fora. Dou-me conta de que acertadamente errei muito então, ou colocando
de outra forma: fiz as escolhas erradas, tomei decisões incertas, e o que
chamei de liberdade para castigo meu não passou de um devaneio. Minha própria
ausência de critérios, ou minha indiferença aos critérios que delineiam o
indivíduo de caráter e valor, conduziu-me ao então homem, tão despido de
qualidades e autênticos valores que hoje sou. Ao menos os valores que diz o
mundo, a sociedade em que me insiro, prezar.
Destemido por natureza, e convicto de que, na vida o que vale mesmo é o
prazer que se extrai de cada instante vivido, conduzido fui até hoje pelo
ímpeto de meus desejos.
E jamais pensei fosse de mim desconhecida qualquer característica comportamento
sólida. Sempre fui previsível perante mim, aos meus olhos, a meu foro íntimo.
E talvez por isso mesmo fui homem de poucos sonhos, de ganância
amena, relapso para com as virtudes, ou
impróprio para a prática de alguma sã virtude. Talvez tenha sido virtuoso, e
nisso sei que não peco em afirmar, na prática da caridade de acudir o próximo.
Isso óbvio, desde que não implicasse em ter que sacrificar o que era por
sedimento a minha própria satisfação. Jamais daria na fome meu pão inteiro a um
faminto. Um pedaço na certa, inteiro não.
E como dizia no início, relegado à solidão, a um isolamento descomunal, tenho deparado-me com o inevitável, sou
obrigado a minha. Inclinado ao orgulho e à indiferença de qualquer crítica
voltada à minha pessoa, sempre fui de uma concreticidade de ocupar-me de mim e
somente de mim. E é com estranheza entre
eu e eu mesmo que, a cada dia, a cada momento vivido, me desdobro como um
lençol guardado numa gaveta. Ou pego-me
a desnovelar um novelo que sempre esteve sossegado em seu canto aguardando o
momento para ser desfiado e ceder seu fio a uma possível trama.
E logo eu que sempre me considerei por natureza drástico sim, dramático
não, dou-me conta de que principio numa encenação trágica. Uma encenação de mim
para comigo, no palco restrito deste ambiente vasto, que me serve por leito para o escorrer das
águas do rio de meus dias.
Jamais pude crer desde que fui lançado à arena da vida que seria de
forma tão cruel conduzido a excluir-me do convívio humano. Na verdade amanheço
e percebo-me como o sol a raiar no horizonte, iluminando nada além de uma
extensão de terra tosca, uma paisagem sem encantos. E anoiteço buscando
dissolver o silêncio mudo do dia em possíveis sonhos que fomentam minha alma
sempre ávida de uma previsibilidade do amanhã desconhecido.
E inspiro o ar vicioso da mesmice de meus próprios hábitos. Minha rotina
é como uma rocha que resiste às intempéries. E esgoto-me em querer de mim uma
novidade, quando de mim já o sou por completo mistério revelado.
E o que alcanço a cada dia, no galgar dos degraus do tempo, não passa de
uma previsibilidade de mim. Já sei hoje como serei amanhã. E conduzo então os
fatos de forma simplificada. Minha vida se por quebra-cabeça tomo, encontro-a
fácil, como formas de beiradas geométricas que se unem num critério óbvio demais
para qualquer um que quisesse se ocupar dela.
Mantenho assim os nervos tensos. Ergo e endureço a cerviz diante da vida
e aguardo temeroso o que me restará no ponto final da existência. O espectro de
minha própria morte.
E a alegria, tristeza, tempestuosidade ou bonanza em mim, são como
pontos antagônicos que se rivalizam entre si, nenhuma contrafactualidade
geram, a não ser um relampejo de mim, naquilo que já sei que sou.
Portanto o avesso de mim é nada mais que a inevitável ânsia daqueles que aguardam a
chegada do trem na estação. Onde então devem recolher sua bagagem e principiar
a marcha rumo ao lar que os aguarda. Lá onde seus compromissos são como tijolos
que erguidos formarão algo de significativo, até mesmo de belo, ao olho de algum
estranho.
Percebo então que dentre muitos, não sou assim tão inevitavelmente
previsível. Sou sim como uma interrogação, no final de uma frase inserida num
diálogo entre Deus e o Diabo.
E a resposta a essa indagação está lá, enterrada em meu íntimo.
Constitui-se na verdade, na coroa de espinhos que orna meus dias e embeleza de
forma sutil e significativa o mistério da vida.
Sofia alternava ao lado da sogra as noites de
sentinela, junto ao leito do enfermo Boris.
Nesta noite em particular contemplava o enfermo que ardia em febre e lembrava-se
dos primeiros dias... Os dias em que conviveu com aquele rapaz que já conhecera
com aparência de debilitado na saúde.
A lividez das faces de Boris, bem como seu físico e
até mesmo sua maneira de falar, como que sempre cansado por natureza, levava
qualquer um a deduzir logo tratar-se de um rapaz acometido de alguma
enfermidade séria.
Caia a noite e, dia após dia, sogra e nora
alternavam-se à cabeceira do jovem enfermo que transvaliava, e jovem ainda,
principiava a abandonar a vida.
Sofia evitava manifestar à sogra a temeridade da perda
do marido que considerava próximo ao fim. Esta por sua vez buscava não
demonstrar à nora o desespero que invadia sua alma, prevendo perder o único
filho.
E assim as duas mulheres arrastavam os dias e varavam
as noites, numa ânsia contínua de ressuscitar ainda em vida o pobre Boris de sua
enfermidade.
Até que se deu o inevitável. A consumação da agonia do
rapaz que transcorreu meses em seu leito de enfermo. A mão misteriosa da morte
recolheu seu último suspiro, e o entregou de volta a Deus.
Sofia e sua sogra cobriram-se de luto. E prantearam
solitárias por tempo vasto aquele que para longe delas se fora, para nunca mais
voltar.
E latejou no coração de ambas como um princípio de
solidão, impossível de dissolver-se. Impossível de ser compartilhada.
Ajoelhadas aos pés do leito onde jazia o corpo inerte,
debulhando-se em lágrimas, cada uma das duas principiaram a deslizar as contas
do terço, intercedendo junto a Deus, pela alma daquele que tão cedo as deixava
para trás.
Deu-se o findar do tempo necessário para que se
conduzisse o corpo do jovem à sepultura.
E seguiu então o féretro pelas ruas. E cortejo solene
se fez. A dor estampada nas faces da viúva e sua sogra, revestidas ambas pelo
negro do luto, carregando nas mãos o rosário, emocionou a todos que em
procissão fizeram questão de dar o último adeus ao jovem.
O sol não brilhava. O céu parecia conivente com a dor
das duas mulheres; senão negro, cinza.
Desceu à cova o caixão, com a cruz de Cristo por sobre
a tampa do ataúde.
Sofia e sua sogra voltaram as costas e, penitentes em
sua dor, regressaram para casa.
Selaram a porta do quarto de Boris, como um sinete
encerra um templo sagrado. E o tempo? O tempo encarregou-se de sorver do
coração das duas mulheres o gotejar lento daquela dor. Daquela duplicidade de
angústia e amargura que envolveu por anos o coração de ambas.